26 abril 2014

e de repente é noite (XXI)

Havia um poço
de água muito fria
e seus perenes avisos
de obscuridade.
Havia uma bica de bronze
onde pousava a boca
sem ter sede,
só por nela teres bebido.
O dia anunciado
nas fendas da janela.
Fragrâncias matutinas
no voo dos primeiros pombos
a branquear o dia.
E um súbito encantamento
em nossos peitos:
um vulcão de sonhos
mais alto que a manhã.

Poema de João de Sá, do livro "E de repente é noite", 2008.
Fotografia: Albufeira do Peneireiro

22 abril 2014

e de repente é noite (XIX)

Em Maio os campos acendiam-se
e o céu, límpido, era mais alto e lento.
A horizonte tornava-se um veleiro
afastando-se num tremular de lenço
em que não cabia nenhuma dor de exílio.
Pela tarde vinham as trovoadas,
seu peito metálico oprimindo
a nossa vigília de medo,
por não reconhecermos a sua voz.
Pouco ou nada sabíamos
do malogro das esperanças
pelos outros sonhadas para nós,
mãos pousadas no vapor das vidraças,
como no extremo de uma comoção enternecida.
E o que se erguia dos novelos de trovões
falava-nos vagamente de uma história antiga
em nada semelhante à vida.

Poema de João de Sá, do livro "E de repente é noite", 2008.
Fotografia: Pôr do sol - Vila Flor

19 abril 2014

e de repente é noite (XVIII)

Saber como são breves
as manhãs sem sombras.
Ir do latejo da luz
ao ondear da seara
desenhando cotovias
com o ritmo dos ventos.
Dar uma cor a este canto
de distraída cigarra:
talvez um Junho de cerejas
a escalar o branco do linho.
E um divino poder nos conceda
que aprendamos a arte do sol.

Poema de João de Sá, do livro "E de repente é noite", 2008.

16 abril 2014

e de repente é noite (XV)

A impetuosa deambulação do álcool da escrita atravessando
este apego às pausas nocturnas.
Fumegam as montanhas de tanto tédio expelido
de seus profundos alvéolos
preenchidos com minha ansiedade de toupeira
ante os segredos últimos da terra.
É de noite que as aranhas dos sonhos
segregam mais translúcidas teias
e dúctil é o âmbar das eiras sob as escamas fosforescentes
do luar de Agosto.
Nos solares abandonados, meus herméticos olhos
só repousam no escuro dos corredores
como se descobrissem, de repente,
a substância de que foram feitos.

Poema de João de Sá, do livro "E de repente é noite", 2008.
Fotografia: Pôr do sol - Candoso.

15 abril 2014

Via crucis

 A Semana Santa, do Domingo de Ramos ao Domingo de Páscoa é cheia de significado para os católicos, com a celebração de momentos dos mais marcantes desta religião. Em Vila Flor é habitual esta semana ser vivida de uma forma intensa e este ano não é exceção com um programa extenso e variado a convidar os crentes (e menos crentes) à celebração Pascal.
Um dos momentos altos destas celebrações é, sem dúvida, a representação da Via Crucis, caminho da luz, acompanhando os passos de Jesus desde o pretório até ao Calvário, na noite do Domingo de Ramos.
A representação da paixão do Senhor junta um grupo de algumas dezenas de figurantes, de diversas faixas etárias, que levam o seu papel de atores e desta vez de cenas bíblicas, muito a sério, com grande efeito visual e muita emoção.
As cenas principais decorrem em frente aos passos do concelho com efeitos sonoros e luminosos, com uma multidão a assistir em silêncio à narração, de todos conhecida, mas cada ano diferente, sempre renovada.
A Via Sacra tradicional não incluiu a Ressurreição, mas a representação desta 15ª estação é uma forma mais positiva de celebrar a Páscoa. A Ressurreição deixa a esperança, ou melhor a certeza, de um destino melhor.
Após terminar a representação a procissão com os andores do Senhor dos Passos e Nossa Senhora das Dores continua a volta pelas principais ruas da vila, terminando na Igreja da Misericórdia, local onde teve início.
As celebrações da Semana Santa vão suceder-se e terão o seu término no domingo de Páscoa, com a Visita Pascal.
Estas celebrações são levadas a cabo pela Santa Casa da Misericórdia de Vila Flor, pela Paróquia de S. Bartolomeu e o apoio da autarquia.

12 abril 2014

e de repente é noite (XIII)

Que os instantes do dia
Se incendeiem de mar,
Como uma alma ao descobrir
Os fulgores da carne.

Poema de João de Sá, do livro "E de repente é noite", 2008.
Fotografia: Pôr do sol - Vilarinho das Azenhas

08 abril 2014

e de repente é noite (XVI)

Acenas-me de longe,
de caminhos onde ressoa já a eternidade.
Queres avisar-me da morte próxima,
sebes de amoras embargando-te a voz.
Mas vens ao meu encontro.
Corres através do ar iluminado de um dia
que nenhum calendário registou.
Ocultas a notícia.
Nos braços todo o fogo da manhã.
Abres as mãos. Sorris.
E vens dizer-me que não queima.


Poema de João de Sá, do livro "E de repente é noite", 2008.
Fotografia: Pôr do sol - Arco/Vale da Vilariça.