24 junho 2023

A Minha terra (Cabral Adão)


A MINHA terra é uma sede de comarca do distrito de Bragança, chamada, por mercê de vontade real, Vila Flor.
Se «quem o feio ama, bonito lhe parece», que acontecerá com quem ama o bonito? Excede tudo quanto se possa congeminar em alegria íntima, em plenitude de encanto, em sorrisos interiores de apaziguamento. Amar a minha terra é amar uma flor, o fulcro da mais bucólica poesia, o molde da beleza, a cor, a graça, a doçura!
Ainda me chegam a cada passo os perfumes da serra, aquela vertente do Facho que se avista logo do Alto de Espinho, no dorso do Marão, divisório e austero.
São estonteantes as emanações do mar amigo, à beira do qual me fiz enteado, por felicidade do destino. Eu já me acostumei a estas paisagens aliciantes, que o mar recorta em quebradas de capricho, cauda verde-clara a brincar permanentemente com os panos verde-escuros da nossa costa arrábida. Mas quando me extasio pelos altos de São Filipe ou de São Luís, gozando a delícia de panoramas duma nobreza sem par; quando me perco, como um ponto num todo, pelo areal imenso e miudinho da Troia, procurando nos conchais as peças mais bizarras; quando me embriago na alegria picante dos laranjais da beira-Sado, outros mares espumados de folhagem escura, onde as bolas de oiro sorriem aos olhos, pontuando a fortuna do apetite em haustos de cor e fragância; quando os crepúsculos de Outono me prostam numa adoração de hossanas, embebendo-me a alma com melancolias de ametista e oiro... – ah! então a voz do berço vem-me bater aos ouvidos, como um ressaibo de quem sofre ciúmes! E que faço eu meu Deus? Que faço?
Abro o coração e releio as colecções das minhas lembranças. É então que eu julgo sentir as tais nevralgias da alma a que nós somos atreitos. É então que eu julgo sentir - saudades!!!
Saudades da minha praça. Lembrai-vos, rapazes do meu tempo, da praça de Vila Flor? Era a sala de visitas, o palco, o estádio, o jardim, a praia, o «rendez-vous» da juventude de há anos. Quem havia de dizer que o coração da linda vila se imolaria em holocausto duma urbanização geométrica, mas cruel?!...
Estou a vê-la, nas noites de luar, o luar faiscante de Trás-os-Montes; grupos de rapazes, de raparıgas, passeando, passeando, dando voltas, os bancos repletos, as janelas de roda floridas de moradores, gargalhadas por um lado, correrias de crianças por outro... e o luar sempre a banhar a minha praça, num embalar de mistério que só de longe se vem a compreender!
Saudades da Fonte Romana, talvez donde brotou água para me fazer cristão. Saudades da minha serra, onde as capelinhas vigiam, como postos de fiscalização do céu, imperceptivelmente ungindo as almas duma bênção reconfortante, quando alvejam ao sol, ou murmuram à lua uns segredos de brancura que quase se adivinham nas percepções do sonho. Saudades dos vinhedos, dos pinhais, da visão esplendente das nossas madrugadas, surpreendido o viajante nas Portas do Sol ou na scanadas da Figueira Preta. Saudade do sino que repicou, festivo, na hora do meu baptizado, e também no do meu primeiro filho. Saudades das pombas que eu via sempre no céu, em revoada de branco sobre o azul, durante a procissão de Páscoa, ou na de Pascoela, quando se levava o Senhor aos presos da cadeia. Saudades da missa do senhor padre António, modelo de virtude e sacerdócio, para quem nunca foram penosas as cruezas do seu mester sagrado.


Saudades... dos tipos da minha terra.

Excerto do livro Paisagens do Norte, do Dr. Cabral Adão, publicado em 1954 e reeditado em 1998 pela Câmara Municipal de Vila Flor.
Luís Manuel Cabral Adão nasceu em Vila Flor a 24 de Junho de 1910, falecendo a 6 de Agosto de 1992, em  Almada, vitimado por paragem cardíaca, partiu, no dia seguinte, para Vila Flor, para jazigo de família.