Localizada no sul do distrito de Bragança - «o meu distrito pobre», como lhe chamou o imortal Trindade Coelho, (pobre, sinónimo de abandonado).
Vila pequena. Airosa, concordo. Sempre uma brisa perpassa, um ciciar de aragem, qual leque misterioso que refresca benfazejo.
Tradicionalmente foi centro de industria judaica, nos ramos de ourivesaria e curtumes - características cinzeladas em vestígios da sua etnia, com vielas apertadas na parte velha, casario concentrado, e, quanto a curtumes, lá está o sítio do
pelame, quem vai para Róios.
Arqueològicamente, lá tem a sua Porta de Entrada e muralhas mortas, a Fonte Romana, a valorosa Matriz restaurada, os arcos esculpidos em casas e fachadas, os brasões heráldicos, além do que se encontra no concelho. No cimo do morro que a culmina, as
Capelinhas, pombas brancas a saudar quem anda naqueles caminhos, numa bênção que nos deitaram de geração em geração...
Já óleo bastante aplicaram na sua tela, ao longo da história, filhos e amigos que a conheceram. Já se ergueram muitas casas modernas, surgiu a Avenida, abriram-se outras artérias. A Praça,
estabelecimentos de ensino, urbanização geral de muito agrado, tudo isto constitui a parte jovem desta vila transmontana. Já homens se fizeram e cresceram, filhos honrosos que a distinguem. Dirigentes administrativos esculpiram em «pedras que falam» o valor e o interesse carinhoso que lhe devotaram.
E é com admiração e orgulho que vejo subir um Museu-Biblioteca Municipal, de acesso público, bem recheados. Sendo dos melhores de vilas nortenhas , aumenta dia-a-dia a sua preciosidade - doação de beneméritos inesquecíveis, merecedores de reparo elogioso.
Com satisfação vejo nascer o Externato de Santa Luzia, moderníssimo no corpo, fonte de plasma educativo a emanar para a juventude local e concelhia, sedenta de cultivar-se!
Eu, hoje, vou falar mais de Vila Flor. Vou contar um sonho que tive («sonhar é fácil»), numa noite próxima, lá longe, muito distante em terras portuguesíssimas do Ultramar, onde ali sentimos melhor o bafo do berço que nos embalou, e nos aquece mais o calor das plumas do ninho onde nascemos - algures no concelho de Vila Flor.
Passaram muitos anos de ausência. Regressava... aquela Vila que eu pisei a vez primeira, guiado por mão materna.
De boné na cabecita, os olhos giravam mais, ao ver mais cor, mais gente, ruas grandes e casas novinhas bem caiadas, muitos brinquedos no
soto da Emilinha, e na
feira, homens bem vestidos a falar muito alto, mulheres que guardavam cebolas, batatas e mais coisas nos sacos das criadas, ou pesavam com a mão uma galinha presa com
baraços nas patas e nas asas. Na minha aldeia não se fazia assim. Os homens falavam menos e não havia multidões como aqueles
formigueiros. Batatas havia muitas na tulha, e galinhas pelas ruas, eram de toda a gente...
Puxava pela mão de minha mãe para não perdê-la. Diziam que era
feira, a
feira dos 28. E palavras como a
praça,
farmácia,
cambra,
soto,
registo cebil, e demais, eram guardadas por mim num sentido parabólico.
Na vinda, todo egoísta por levar um
carrinho, admirava a estrada larga e lisinha que dava à minha aldeia e apetecia-me correr e fugir. Mas tinha receio de a estrada acabar nas curvas, o que surpreendido verificava não ser.
Fui crescendo. Recordo o
exame da quarta, na Vila, que via de outra maneira. A vida desabrochava a meus olhos, entrando no coração toda a natureza que me tocava.
Um dia, porém, parti. Para longe...
«... Ai, ah quantos anos eu parti chorando
Desse meu velho ... carinhoso lar...»
Como dissera, sonhara com Vila Flor...
«Vi aquela Avenida limpa, bem limpinha. Junto à Avenida, à parte esquerda de quem sobre da Praça à
Domus Municipalis, um jardim enorme. Que jardim! Dantes era a
cortinha grande e estéril de não sei de quem. Agora, era a sala de visitas, tapete de ouro a quem batesse à porta. Um escadario duplo e simétrico descia da Avenida para esse jardim, o qual se ligava à Praça e à rua da Casa Sil por um muro de granito rendado.
Nesse jardim, havia canteiros de flores garridas. Sebes enormes de roseiras, com rosas que mais despertavam a luxúria de beijá-las por tão formosas. Havia um lago, onde vi peixes em concursos de natação. Árvores gigantescas deixavam pender os seus braços em amplexos paternais a quem desejasse repousar nos bancos de pedra muito aparada, em extase de frescura. Carreiros de areia fina faziam de estrada naquele mundo. E, passeando, vi um velho ciumento da juventude, estudantes conversando entusiasmados, miúdos de fisgas em punho em mira de pardais, borboletas volitando aqui, parando além. E, nas copas frondosas, o gorgeio da passarada num hino à Primavera.
Subi as escadas para a Avenida. Vi a Casa do Povo, com duas palmeiras lutando pela subsistência no meio da relva desenhada. Ali estava o busto de benemérito, vila-florense ilustre. Soube que nessa casa havia reuniões sãs de formação geral do povo, cujo contacto notei de melhorado nível.
Depois continuei em frente.
Junto à Casa Verde, um grande casario modernista. Lí: «Cine-Lis». Perguntei e responderam-me ser uma casa de espectáculos «bem preparada», com duas sessões semanais de cinema.
Mais uma volta. Um hospital de construção recente tendo à frente uma bacia jorrando água em repuxo. Perto, uma figura de bronze escurecido. Tez de homem austero a pronunciar distinto: «Caridade - límpida fonte onde muitos desprotegidos da sorte vêm matar a sua sede de amor e justiça». Por ali vi a abundância de Vila Flor, negando a míngua de outrora da linfa cristalina tão necessária a todo o mundo...
Após relancear a vista pela nova artéria, vim embora. Nisto, meus olhos deslumbram: um campo de futebol. Mais abaixo, em direcção quase rectilínea à Fonte Romana, máquinas barulhentas rasgavam o seio da terra sem piedade, pisando e destruindo leiras férteis. Indaguei: «...é uma auto-avenida, com jardim pelo meio, bancos e muitas flores, que se vai fazer. Ao fundo, naquela eira, perto da Fonte,
diz que vão fazer o Palácio da Justiça...». Havia tabuletas semeadas «vende-se», «terreno, vende-se». Para construção de casas novas, novinhas mesmo, com o estilo do nosso século.
E imaginei ao longo dessa Avenida majestosa a minha casa, essa casa que todos sonham fazer construir quando puderem.
Apeteceu-me, então, antevisionar a vila do futuro. Para isso subi às Capelinhas, respirando o hálito do rosmaninho e o sabor campestre, enchendo a alma com a beleza de Vila Flor - estendida em mantos de púrpura com dobras de verdura.
Em primeiro plano, um pinheiro manso coava a luz do sol marinheiro.
Eram vinhedos, de um verde carregado prometendo-se fecundos, olivais cinzentos, searas louras brincando com o vento que as gingava, amendoeiras e figueiras a sorrir de onde em onde, parte do vale extenso da Vilariça, serras e serras... puras como quando virgens foram...
O Astro amigo chamou-me com um adeus, cheio de pena por deixar aquela imagem viva do seu dia. Levava na boca o suco dos beijos húmidos que dera com sua luz terna.
Desci. Os grilos encetavam sua cantiga monótona. Singela sinfonia de tão grande espírito! Era tão sentida que tive medo de mim próprio por ouvi-la.
As luzes da vila acenderam-se. Altivos candeeiros modernos, por toda a parte, vitrinas luminosas, alguns reclamos que me pareciam pirilampos gigantes bulilando as trevas.
Mas..., um ruído... um sobressalto... e acordei.»
- Estou na realidade em Vila Flor? Custa-me a crer! Não posso estar!
Vila Flor não era, agora, como eu a vira. Já fora bela, mais linda! Já fora! Eu não cria...
Mas... Vamos querer que o sonho seja realidade, com uma vontade indómita de arrancar montanhas. Homens são os que se realizam nesta vida humanitàriamente e preparam o Futuro.
«Homo est voluntas» - disse um filósofo!
Quero - uma palavra mágica , raio que fulmina a indolência e a anorexia. Digamos todos em uníssono: - «quero», porque até para os mais pobres existe a divisa «
querer é poder».
Texto de
Nascimento Fonseca, publicada no jornal Notícia de Mirandela, a 11-06-1967.