07 novembro 2023

Cartas de longe

Levantei voo à hora em que as estrelas 
Emergiam do escrutínio da lonjura...
Não medi, nem distâncias, nem altura,
Todo eu era olhar, a recebê-las.

Em mim brotou o êxtase de vê-las,
De sentir, bem cá dentro, a tessitura 
Dessas gotas de água alada e pura,
Movido pelo medo de perdê-las.

Vi-me vogar numa amplitude de opalas
De secreto fulgor, quase a tocá-las,
Fendendo o insondável do seu véu.

Mas para além, havia outros espaços,
Das minhas asas só ficaram braços,
E, do meu voo... só restou o céu!

Poema de João de Sá, do livro "Flores para Vila Flor", 1996.
João Baptista de Sá, nasceu em Vila Flor, a 7 de Novembro de 1928.
Faleceu a 23 de Fevereiro de 2012.

30 setembro 2023

A confissão da Amélia (II)


Os domingos, na aldeia, são sempre dias do Senhor! Há uma alegria em todas as coisas, diferente da dos outros dias; umas harmonias de gorjeios e marulhares, mais termos que nos  dias de trabalho. As fatiotas dos trabalhadores são mais graves, as vestes das raparigas mais vistosas, as brancuras dos linhos mais impecáveis. E, ou esteja um domingo radioso de sol, ou o escureça um temporal de chuva e trovões, há sempre sinais flagrantes da sua soleníssima hierarquia, adentro da sociedade hebdomadária. São os toques dos sinos a chamar para a missa do dia, para a bênção, para a doutrina da miudagem; são acordes das violas e dos cavaquinhos, alfaias domingueiras que os jornaleiros usam para lhes adoçarem os calos; são os parzinhos ou idílios dispersos por toda a aldeia, nos caminhos, nos cobertos e nas salas.
É um destes parzinhos, um destes idílios, que vamos encontrar num maravilhoso e criador domingo de Setembro, manhã ainda, no quintalinho da Amélia. Adivinha-se já que é o Maximino, ao lado da sua estremecida conversada, presos dos olhares e dos sorrisos, um do outro.
Nessa manhã, a Amélia, já meio restabelecida, resolvera fazer-lhe a sua confissão. Enquanto a isso não se resolvesse, haveria sempre aquela dolorosa cena do beijo, como pedra de gelo, a arrefecer constantemente os seus mais ardentes arroubos.
Tinham-se sentado em cima do muro, tapetado de musgos e conchilros, que dava para o caminho. O quintal era extenso e descia em inclinação suave até um ribeirito, que corria muito precário para o rio; estava cheio de milho, tão crescido que havia lá pé que cobria um homem dos mais altos, não contando
com o «pendão». Nos intervalos, cresciam feijoeiros e num canto, ao pé da capoeira, subiam esgrouviadas couves galegas, as folhas muito enrugadas, de viçosas, guardando nos refoIhos, gotas de orvalho, que molhavam os pés a quem as abanasse. A capoeira, primitiva construção de alvenaria e tapumes, com a respectiva rede, os respectivos cestos para as galinhas porem os ovos, no fundo dos quais ficava sempre o «aninhador», e o respectivos poleiros, dava guarida a algumas dezenas de belos exemplares pedreses, castanhas, pretas, «carecas» e um garbosíssimo galo que atroava os ares, periodicamente, com o seu garboso cantar.
Do lado de lá do caminho, continuavam os tabuleiros de milho, alto em toda a parte, porque era regado, lá se vendo os regos condutores da água cortando as terras e até o caminho, em todas as direcções. E o cenário continuava em linhas quebradas até ao ribeiro, onde algumas lavadeiras ensaboavam peças de cor.
A Amélia encostava-se a um amieiro esguio, que dava «enforcado» a uma grossa e alta cepa, recamado de heras de folha pequenina.
- Não calculas, Maximino, quanto te estou grata por tudo quanto fizeste por mim! – ciciou-lhe com doçura.
- Não me fales nisso, Amélia! Nada fiz de especial. Faria isso por um qualquer, quanto mais por ti?!
- Eu sei que me queres muito e por isso... tem paciência, Maximino! Mas vais saber toda a verdade do que se passou como Júlio.
- Não fales nisso, que é melhor - intimou o rapaz, levantando-se e cortando um rebento de amieiro com que se pôs a bater numa perna, com nervosismo.
- Falo, sim! Nem descanso enquanto te não confessar a minha fraqueza. Sabes? Eu não via outra coisa senão a ti. Mas não me eram indiferentes os galanteios dos outros. Que lhe queres? Somos assim: fracas, fracas, talvez levianas! Umas mais, outras menos, ainda outras de maneira que não se percebe. Mas somos assim. Damos o cavaquinho por um dito, por um elogio, por uma dedicação de qualquer que não seja o que nós amamos. As vezes, estamos com o coração num, que é o verdadeiro, e o olhar noutro, que não conta nada para nós! Outras vezes julgamos que não nos deve impressionar o palavreado de qualquer engraçado e... não! gostamos até de os aturar, no fundo!
Foi por isso que eu ouvi mais de cem vezes o Júlio da Venda pedir-me namoro e o fitei com certo enleio e me ri com ele. Dizia-lhe sempre que não, é claro! Depois, esforçou-se por que eu lhe desse um beijo. Não me zanguei abertamente, como devia: ri-me, ainda por cima! E quando ele me garantiu que, se o beijasse, já não lhe poderia negar namoro, que o beijo é a assinatura da posse, e não sei que mais... eu animei-o a que experimentasse. - «Experimente e verá!»
- Oh, cala-te, por Deus, Amélia! Preferia mil vezes que nunca me contasses essas tontices!
- Ouve, Maximino, o resto! É a defesa da culpada que tens de ouvir. Agora... aqui vai a minha grande culpa: marquei-lhe entrevista aqui ao portão. Eu achava graça, andava alvoroçada com aquele encontro, mas não lhe punha fé nenhuma. No entanto... perdoa a esta cabeça louca!... não me importava de o
beijar, só para ver... Ele chegou, abraçou-me e quis entregar-me uma caixinha. - «Que é isto?» - perguntei, atrapalhada.
- «E uma pequena escrava de ouro, uma lembrança para si...» – Não pude ouvir mais. Fugi para cima, ao compreender as maquinações daquele maroto. Tive a desdita de tu assistires a esta maluqueira horrível... Pronto! O senhor Padre Miguel já me absolveu. Agora absolve-me tu, por Deus! suplicou a pobre rapariga, a chorar.
- Já estás perdoada há muito, Amélia! Não só agora, por te ver doente. Mas nunca mais falaremos nisso, valeu?
- Valeu! - concordou a Amélia, enxugando os olhos.
O Maximino expôs-lhe, em seguida, o seu desejo de casarem logo que o doutor consentisse, entretido, ao mesmo tempo, em tecer com braços de hera, uma espécie de coroa, que colocou na fronte da sua doentinha querida.
Nesta altura, apareceu a cabeça do Dr. Casimiro acima do muro, que passava no caminho, em visita aos doentes.
- Então, tu já aí estás, rapariga?! - perguntou, sorrindo.
- E verdade, senhor doutor! Parece que já estou boa para outra - respondeu-lhe a Amélia, também risonha.
- Tem muita cautela, rapariga! Olha que tu melhoraste, sim! Mas curar, não! Só se arranjasses um coração novo.
- Tenho aqui o do Maximino, que mo esteve a oferecer agora mesmo.
- Olha que isso de casares... não sei, rapariga! Pelo menos não podes ter filhos, se não arriscas-te a baquear. Adeus! Deus vos ajude!
- Adeus, senhor doutor! Muito obrigada!
Já o doutor Casimiro ia lá longe, quase a entrar na curva do ribeiro, quando o Maximino, esbarrigando-se no cimo do muro para ainda o enxergar, lhe gritou:
- Olhe, senhor doutor! Há-de sero que Deus quiser...

A primeira parte pode ser lida aqui:

Retirado do livro O Homem da Terra, da autoria de Luís Cabral Adão, publicado em 1986.

28 setembro 2023

O Terreiro


Ao; Francisco de Soveral Pastor

A Praça é dos cartolas, dos senhores
De gravata, de pose ou de dinheiro,
Onde passeiam leigos e doutores:
O médico, o juiz, o tesoureiro...

Mas o povo, os humildes servidores
Nas horas de lazer vão pra o Terreiro,
Ali tomam o sol, tomam amores,
Ali mostram o fato domingueiro.

O Terreiro é salão de baile, até,
Onde as moças da vila dão ao pé
Nesses jogos de roda tão castiços.

«Quero dar duas voltas a meu jeito!»
Cantam elas, forçando o rijo peito
A rodar contra o peito dos derriços!


Soneto retirado do livro “Versos – Vila Flor”, impresso em Novembro de 1966, da autoria do Dr. Luís Manuel Cabral Adão.

15 setembro 2023

Para a escola

Meninos-para-a-escola (Amaryllis belladonna)


E lá vai, lá vai
A criança para a escola,
Toda catita!
Lavadinha, tão bonita,
Lá vai, lá vai, lá vai.

Saiu de casa, inda cedo,
Em direção à escola.
Sozinha mas não tem medo -
Leva aos ombros uma sacola.

Vai andando em passo lento, 
Pára aqui, espreita além.
Lembra-se a todo momento, 
Das palavras da sua mãe.

- Meu filho porta-te bem,
Respeita o teu professor.
Não faças mal a ninguém,
Porque ralha Nosso Senhor.

Tudo sol, tudo alegria,
Sente-se feliz a criança. 
Até o melro assobia! - 
Mais ânimo, se não cansa. 

Chega à escola, a horinhas,
Foi o primeiro a entrar.
O professor aos meninos,
Diz ser exemplo a imitar.

E à tarde, já à noitinha,
Hora de descanso e saudade,
Dizia ele à avozinha:
- Já conheço a Caridade.

- Diz-me então o que é,
Filho do meu coração:
- É que hoje o Manel Zé, 
Também comeu do meu pão.

E lá vai, lá vai
A criança para a escola,
Toda catita!
Lavadinha, tão bonita,
Lá vai, lá vai, lá vai...

Maio de 1961
J.N. Fonseca*
*José do Nascimento Fonseca nasceu no Nabo a 22-12-1940 e faleceu a 27-07-1983.

24 junho 2023

A Minha terra (Cabral Adão)


A MINHA terra é uma sede de comarca do distrito de Bragança, chamada, por mercê de vontade real, Vila Flor.
Se «quem o feio ama, bonito lhe parece», que acontecerá com quem ama o bonito? Excede tudo quanto se possa congeminar em alegria íntima, em plenitude de encanto, em sorrisos interiores de apaziguamento. Amar a minha terra é amar uma flor, o fulcro da mais bucólica poesia, o molde da beleza, a cor, a graça, a doçura!
Ainda me chegam a cada passo os perfumes da serra, aquela vertente do Facho que se avista logo do Alto de Espinho, no dorso do Marão, divisório e austero.
São estonteantes as emanações do mar amigo, à beira do qual me fiz enteado, por felicidade do destino. Eu já me acostumei a estas paisagens aliciantes, que o mar recorta em quebradas de capricho, cauda verde-clara a brincar permanentemente com os panos verde-escuros da nossa costa arrábida. Mas quando me extasio pelos altos de São Filipe ou de São Luís, gozando a delícia de panoramas duma nobreza sem par; quando me perco, como um ponto num todo, pelo areal imenso e miudinho da Troia, procurando nos conchais as peças mais bizarras; quando me embriago na alegria picante dos laranjais da beira-Sado, outros mares espumados de folhagem escura, onde as bolas de oiro sorriem aos olhos, pontuando a fortuna do apetite em haustos de cor e fragância; quando os crepúsculos de Outono me prostam numa adoração de hossanas, embebendo-me a alma com melancolias de ametista e oiro... – ah! então a voz do berço vem-me bater aos ouvidos, como um ressaibo de quem sofre ciúmes! E que faço eu meu Deus? Que faço?
Abro o coração e releio as colecções das minhas lembranças. É então que eu julgo sentir as tais nevralgias da alma a que nós somos atreitos. É então que eu julgo sentir - saudades!!!
Saudades da minha praça. Lembrai-vos, rapazes do meu tempo, da praça de Vila Flor? Era a sala de visitas, o palco, o estádio, o jardim, a praia, o «rendez-vous» da juventude de há anos. Quem havia de dizer que o coração da linda vila se imolaria em holocausto duma urbanização geométrica, mas cruel?!...
Estou a vê-la, nas noites de luar, o luar faiscante de Trás-os-Montes; grupos de rapazes, de raparıgas, passeando, passeando, dando voltas, os bancos repletos, as janelas de roda floridas de moradores, gargalhadas por um lado, correrias de crianças por outro... e o luar sempre a banhar a minha praça, num embalar de mistério que só de longe se vem a compreender!
Saudades da Fonte Romana, talvez donde brotou água para me fazer cristão. Saudades da minha serra, onde as capelinhas vigiam, como postos de fiscalização do céu, imperceptivelmente ungindo as almas duma bênção reconfortante, quando alvejam ao sol, ou murmuram à lua uns segredos de brancura que quase se adivinham nas percepções do sonho. Saudades dos vinhedos, dos pinhais, da visão esplendente das nossas madrugadas, surpreendido o viajante nas Portas do Sol ou na scanadas da Figueira Preta. Saudade do sino que repicou, festivo, na hora do meu baptizado, e também no do meu primeiro filho. Saudades das pombas que eu via sempre no céu, em revoada de branco sobre o azul, durante a procissão de Páscoa, ou na de Pascoela, quando se levava o Senhor aos presos da cadeia. Saudades da missa do senhor padre António, modelo de virtude e sacerdócio, para quem nunca foram penosas as cruezas do seu mester sagrado.


Saudades... dos tipos da minha terra.

Excerto do livro Paisagens do Norte, do Dr. Cabral Adão, publicado em 1954 e reeditado em 1998 pela Câmara Municipal de Vila Flor.
Luís Manuel Cabral Adão nasceu em Vila Flor a 24 de Junho de 1910, falecendo a 6 de Agosto de 1992, em  Almada, vitimado por paragem cardíaca, partiu, no dia seguinte, para Vila Flor, para jazigo de família.

23 fevereiro 2023

A velha praça



A velha Praça começava
Onde findava
A nossa inquietação.
Varandas engalanadas
E janelas sempre acesas.
Harpejos de comoção
Libertados dum piano,
Na branda respiração
Das tílias quase apagadas
No crepúsculo de Verão.

E nós a vermos os outros.
Sobretudo a vermo-nos passar
Desde o começo do mundo,
Tentando dissimular
O abismo mais profundo,
Com um candil de luar.

Poema de João de Sá, do livro "Vila à Flor dos Montes", 2008.
Fotografia: Praça da República, em Vila Flor, antes do último arranjo urbanístico. 

João Baptista de Sá, nasceu em Vila Flor, a 7 de Novembro de 1928. Faleceu no dia 23 de Fevereiro de 2012, em Lisboa.


07 janeiro 2023

Vento (João de Sá)



Ó este vento que me torce a alma,
Olhando as chamas, no espaldar do escano,
Tecendo o tempo em fios de ano e ano,
Voraz caruncho que ninguém acalma.

Volúvel, este vento amanhecendo...
Corte de longe em coração cigano.
Breve pausa de engano e desengano,
Clamor que me estrutura, corroendo...

Fecho o livro que lia. O impossível
Avantaja-se e torna-se audível,
Mas nada se aproxima que transgrida:

O bater duma porta, uma telha
Partida, vozes, passos numa quelha,
Seja o que for que arremede a vida!

Poema de João de Sá, do livro "Vila à Flor dos Montes", 2008.
Fotografia: A caminho da Ribeirinha, na Quinta da Peça.


01 janeiro 2023

Caminhos (João de Sá)

Que todos os caminhos que descubro
Me descubram também, e neles encontre
Uma fimbria longínqua de horizonte
Desenhando, a névoa, um céu de Outubro.

Das auroras de Agosto o gesto rubro
Se torne voz, me acalente e conte
A odisseia dessa velha fonte
Que emudeceu e nunca disse tudo!

Buscai-me nos caminhos. Sou o monge
Que vem não sabe donde, mas de longe...
Trago textos no olhar, parai e lede.

Eu sou o viajante e a viagem,
Latejo de seara e a própria aragem,
A frescura da água e o ardor da sede!

Poema de João de Sá, do livro "Vila à Flor dos Montes", 2008.
Fotografia: Caminho para o Santuário da Nossa Senhora dos Remédios, em Vilarinho das Azenhas