30 novembro 2012

É quase noite

É quase noite. Para os lados de S. Domingos, onde o sol insiste em permanecer, um céu pregueado de finos laivos de ametísta e rubi. Bem quero evadir-me, mas, onde quer que me oculte dou conta de um não sei quê que me persegue e invade a ponto de me anular um abraço. Sei que não me esgoto no que sou. Há cintilações e cicios que também me constituem, que em mim falam mais alto do que o troar do presente, e aos quais é preciso estar atento. Das horas ficam sempre as cinzas, onde as metáforas regressam sem que nenhum vento as arraste para as vastidões do nada.
E não sei porquê (ou talvez saiba) olhando para os lados do Peneireiro, ouço, de novo, a voz ferida da incontida tristeza de Marina Tsvietaieva* afagando as pedras em jeito de arco da Fonte do Olmo, a aconchegarem o fiozinho de água quase a extinguir-se, a desmaterializar-se, quase a revelar-nos o profundo segredo da terra.
Extrato de um artigo escrito por João de Sá, no semanário Terra Quente, em 2005.
Terminou a  exposição patente no Foyer do Centro Cultural de Vila Flor dedicada ao escritor vilafrorense João de Sá. Passei por lá durante a tarde, a jeito de despedida, e na melancolia da tarde dei comigo a imaginar o que pensaria o próprio autor sobre a homenagem que lhe foi feita. Bastou passear os olhos por um dos textos expostos para encontrar nele a alma do autor e compreender que ela não cabe numa exposição, por maior que ela seja. A melhor homenagem que se pode fazer a um autor é ler os seus livros. Acredito que o Dr. João de Sá aconselharia um espaço aberto, dos muitos  que tinham especial significado, como o Largo da Igreja, o jardim de Santa Luzia, o Rossio ou Nossa Senhora da Lapa (ou o Frade). Só num lugar assim as palavras ganham asas, tomam forma e transmutam-se na própria vila, nos sons e cheiros dos campos em redor, refletindo-se nas nuvens ou nas fragas, regressando à origem, acalentando o peito, fazendo germinar os sentimentos que nos fazem diferentes.
A Câmara Municipal cede os livros gratuitamente, só não lê, quem não quer. Entretanto, eu continuarei a divulgar pequenos excertos, aqueles que me tocarem mais. As "Letras" não é uma área onde me sinta propriamente à vontade, mas, quando elas ganham cor e se convertem em emoções, até um completo analfabeto pode gostar.

*Marina Tsvetaeva (1892-1941) - Poetisa russa, que começou a escrever muito jovem e que teve uma vida muito triste e atribulada, vindo a suicidar-se aos 48 anos, em plena II Guerra Mundial, no Tartaristão.

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