24 junho 2020

No vale da Vilariça



- Bonito dia, Rosária!
- Bonito dia, Gonçalo!
Não eram os personagens do «Idílio Rústico», que Trindade Coelho tão finamente bordou, mas um casal de jovens e de trabalho que morava em Sampaio, lá para as bandas da Vilariça, entre Vila Flor e Moncorvo. Tinham-se acabado de erguer, estrelas ainda a brilhar no azul, mas já esmaecidas pela aproximação do sol. Era naquele Agosto ardente, tão ardente que até se assava uma sardinha posta na hora da sesta em cima duma fraga.
O dia ia a romper depressa e o Gonçalo entrou logo de aparelhar os burros e preparar os sachos para marchar direito à canameira, a meia légua de distância de sua casa.
A Rosária já tinha posto na mesa de castanho, preto de velho, os figuitos e a aguardente do mata-bicho e começava a apanhar no Cabanal alguns guiços bem sequinhos para adiantando o almoço que, por volta das onze horas, ia levar ao seu homem: e até o Zé, raparigo dos seus sete anos, filho do casal, dava os últimos amanhos às costelas e pescoceiras, untando de cuspo as tranquetas dos sedenhos daqueles  e experimentando as molas destas, e verificava se as formigas de ala estavam bem presas e vivas nas grileiras das armadilhas, cevadas de véspera, pois esperava fazer uma boa colheita de tralhões, rabitas, piscos e folecras. E lá vai ele com o pai, que já desce a ladeira, burricos à frente com angarelas, sachos e apetrechos vários sobre as albardas.
As margens do vale são alinhadas e bastante abruptas. Quer dos lados de Vila Flor, quer dos de Alfândega da Fé ou Moncorvo, desce-se muito para se lá chegar. Segue ao longo da Ribeira, desde os cerros de Bornes até ao rio Douro, onde estronca em esquadria.
A canameira do Gonçalo, herdança do seu falecido e bom pai, era uma larga faixa de terreno, começando no caminho marginal e acabando na Ribeira. ladeada pelas courelas dos vizinhos.
Quase ao centro, via-se uma nora de alcatruzes zincados que trazia à água de pequena profundidade até à altura de um metro, suficiente para chegar à todos os cantos do terreno.
Aquelas terras são de uma fertilidade extraordinária!
E este ano, especialmente, que houve «rebofa»!
Quem conheceria aquela extensa planura cobertinha de água que transborda, vale acima, do endemoinhado Douro, muito subido pelas chuvas torrenciais de muitos dias?
Aquela água toda, com um rico nateiro de naturais e fortes adubos, dava à Vilariça o grandioso aspecto dum lago, como outrora dizem que foi, e à ubérrima seiva que vicejará nos seus belos e afamados frutos.
Santa terrinha esta, em cujo seio exubera o sagrado mistério da germinação, no dizer de Campos Monteiro, que a cantou!
E o Gonçalo bem lhe conhecia o valor! Se era quase só dela e do trabalho aturado dele e da própria patroa que viviam!
E governaram-se regularmente, pois tinham um bem fornecido bragal, boa adega com salgadeira, a pipa do carrascão, as linguíças, embrulhadas em velhos envelopes. Numa caixa de madeira, a talha das azeitonas, a arca do azeite, o garrafão da aguardente, uma tulha de pão, um monte de batatas, cabos de cebolas e alhos ao dependuro; e lá no canto da arca, escondia-se uma boa maquia forra.
Muita fartura para os três, muita poupança, mas nada de luxos ou gulodices.
— Eh! burros! Xó!
Mal chegou. o Gonçalo atrelou um burro ao pau da nora, com um frondoso ramo de salgueiro escarranchado no cachaço, para o aliviar da mosca.
O outro iria pastar até chegar a sua vez.

O nosso Zé, com um pequeno sacho, ia fazendo terra fresca, aqui e além, em lugares adrede,  junto dos poisos certos da passarada. arrumado a uma árvore ou a um poste da vinha ou à um merouço com silvas, onde armava as costelas de maneira que o sol. logo ao nascer, fizesse rebrilhar bem às asas das formigas, isca muito apetecida e difícil de arranjar.
O pai, deixando o jerico sozinho a puxar à nora, foi para a horta, de sacho às costas, a guiar à água que, pelas augueirras, corria aos diversos talhos dispostos com simetria. Aqui um talho de cebolo, ali outro de tomates, além de pimentos, de feiões, de abóboras ou botelhas, de pepinos, de cenouras e tal e tal e, mais ao fundo, junto à Ribeira, uma grande extensão onde medrava o «fruto», melancias e melões que faziam boa figura nos mercados próximos.
Alfaces tentas e couves galegas estendiam-se ao longo das augueiras; e no entre-meio de alguns regos e nas pontas das rodeiras, até se aproveitavam os beldros, óptimos para o caldo, que ali cresciam ao Deus-dará.
E à rega ia-se fazendo lentamente, num abrir e fechar de regos que o sacho de Gonçalo operava numa roda viva.
Uma ou outra vez, à água nunca mais chegava ao fundo dum rego, pois se escoava pela buraca de alguma toupeira, à qual não tinha sido afuguentada pelo cadáver duma outra, morta na véspera e espetada numa rodriga a dois ou três pés do chão.
Tapada a buraca por meia dúzia de chuçadas com o olho do sacho, a regra continuava.
Por volta das onze, pela hora velha, quando o Gonçalo soltava o burro para o largar no pasto ao pé do outro e o Zé regressava com alguns pássaros da caçada, chegava a Rosária, de cesta à cabeça, coberta com uma taleiga vazia em que havia de levar, no regresso, alguns pimentos para a ceia.
Dirigira-se para a cabana de colmo, prantada na sombra duma grande nogueira.
O calor já era sufocante e todos limpavam o suor da cabeça e do tronco por entre os peitos das camisas largamente abertos.

Estendido o almoço no chão, sobre uma toalha de linho, alva retesada pelo cloreto, os três se abeiraram da comida, munquindo-lhe e bebendo-lhe assim como manda à lei! O caldo dos tais beldros, muito gostòzinho, o bacalhau com batatas, regados a azeite e vinagre vindos em garrafinhas, e a bela pinga da cabaça que refrescava as secas guelas (até o Zé bebia uma chícara dele!).
Depois... ficavam todos a fazer de jibóias, para ali deita- dos cada um a sua sombra.
Que calmaria durante aquelas horas de sesta! Muito calor, o zumbido das vespas em volta de alguma poça de água que ficou da rega, nem o pio dum pássaro, nem o cri-cri dum grilo!
Mais tarde, ainda com bastante calor, recomeça o trabalho.
Quando a camioneta da carreira subiu a estrada por altura dos Nuzelos, nas ladeiras em frente, o nosso bom Gonçalo já andava com os burros jungidos à charrua, a lavrar a restolha da trigueira. O Zézito, finda a caçada e levantadas as armadilhas, (a tarefa rendeu doze tralhões, três rabitas, e alguns centieiros) tinha ido à Junqueira, povoação na margem oposta do vale, junto à estrada, levar um recado ao seu padrinho Sá Lemos. Ao chegar lá a casa, ficou espantado de ver os filhos do padrinho muito bem postos, com andainas novinhas e gravatas de seda!
Perguntando a um deles os motivos de tanto luxo, foi-lhe respondido que o pai tinha encontrado uma panela de moedas romanas, ao surribar uma terra para bacelo e que o Senhor  Soveral Pastor, de Vila Flor, muito amigo de coisas antigas, lhas tinha comprado por bom preço! Intervindo, o padrinho do Zé deu-lhe a bênção e disse-lhe que já não era a primeira vez nem a segunda que por ali apareciam potes de barro a abarrotar de ricas peças do tempo dos romanos. E havia também muitas pedras de túmulos. Não, que toda a vizinhança era rica de coisas históricas!
Aquela estrada que passava no alto das Quintas do Zimbro e da Tarrincha, foi feita pelos romanos. E as ruínas daquele castelo, frente à Quinta da Silveira, sobre o cabeçozito que se eleva entre o sabor e a Ribeira? Esse não sabia de que data era, mas sabia que deu nome ao vale, pois foi sede dum povoado que se chamava Vila Rica de Santa Fé.

Cumprida a missão, o Zé voltou à canameira muito admirado do que tinha ouvido.
Quase ao toque das Trindades, carregadas as angarelas dos jumentos com algumas botelhas, bandeiras de milho e vagens de feijão, lá seguiram ladeira acima, a caminho de casa, o Gonçalo e o filho, pois a senhora Rosária já tinha abalado, para tratar da ceia.
Junto à fonte das águas minerais, de muita fama para as doenças de estômago, encontraram um grupo de pessoas lá do povo que comentavam um episódio muito engraçado, sucedido na véspera.
Foi o caso que o João Rendeiro, cuja mulher andava para toda a hora, ao despertar, de madrugada, sentiu com os pés uma coisa a mexer-se no fundo da cama; e, certificando-se do que era, deu uns empurrões à patroa gritando-lhe:
- Acorda, oh, Rosa! Olha que já te nasceu o raparigo!

Texto retirado livro Paisagens do Norte, da autoria de Luís Cabral Adão, publicado em 1954. Luís Cabral Adão nasceu em Vila Flor, Trás-os-Montes, no dia 24 de Junho de 1910, tendo falecido em Almada a 6 de Agosto de 1992. Os restos mortais foram sepultados no cemitério da terra natal, assim se concretizando um anseio que expressamente havia manifestado.

Cabral Adão - Síntese Biográfica


1 comentário:

At Ento/ViverParambos disse...

Parabéns por mais um ano a contar os dias que chegaram até aqui com o contributo do "À Descoberta de Vila Flor" que marcou uma era bonita que se vive ainda, com prazer, apesar de todos os avanços. Longa vida as boas causas! Saudações com a nossa amizade, sempre verde de esperança em mundos melhores para quem ainda não os alcançou... eles andam por aí!