

Cumprindo a tradição, realizou-se no domingo dia 27 de Janeiro, o ritual das
Esmolas de S. Sebastião em Freixiel (o dia de S. Sebastião foi a 20 de Janeiro).
A origem deste ritual perde-se nos séculos. O culto a
S. Sebastião remonta pelo menos ao séc. XVI, data provável da construção da
capela dedicada a este santo, com um elegante arco gótico, no local chamado
Portela da Forca. A
arrematação de produtos oferecidos pelas pessoas, à porta das igrejas, é uma tradição muito comum em todas as aldeias do nordeste trasmontano, mas, em
Freixiel, vamos encontrar pormenores que fazem deste ritual uma situação singular no nordeste e não sei se no país.
Pelas catorze horas, quando cheguei ao largo da igreja, fiquei surpreendido com a quantidade e variedade de esmolas recolhidas durante a manhã. Mesmo depois de começar a arrematação, ainda chegaram mais oferendas.

Havia
grande variedade de bolos e pudins (dizem que mais de 40!), vinho do porto, champanhe, whisky, ovos, feijão seco, frutos secos, frutos, fumeiro, vinho, azeite,
cebolas, batatas, etc. Havia também um grande número de pequenas caixas, enfeitadas com fitas e papéis coloridos, eram os
“segredos”. A designação de segredo deriva precisamente do facto de não se saber o que contêm, o que dá uma grande incerteza na hora de licitar. Estava montado o cenário. As pessoas enchiam todo o espaço à frente da igreja, muitas delas sentadas, preparadas para uma arrematação que iria durar mais de três horas.
Três homens ocuparam o
espaço central, rodeados pelas oferendas, em círculo, por sua vez rodeadas pelas pessoas. Começaram por colocar em arrematação as coloridas caixas, que, diga-se, não renderam muito dinheiro. Quase todos os
“segredos” escondiam coisas doces, que foram distribuídas pelas crianças mais gulosas que corriam pelo adro. Quando a arrematação se estendeu aos numerosos bolos, quase todos acompanhados por garrafas com bebida, aproveitei para circular por entre a população,
à descoberta.

Os produtos tradicionalmente oferecidos como esmola ao
S. Sebastião eram o azeite, vinho, batatas, cebolas, feijão, abóboras, fruta e fumeiro. Curiosamente, destes, só as abóboras estavam ausentes e o vinho (da terra) também havia pouco. No passado eram oferecidos muitos
“segredos”. As pessoas ocupavam bastante tempo só a fazê-los, cestos deles, com o objectivo que rendessem algum dinheiro, com pouca despesa. Contrariamente às guloseimas dos dias de hoje, alguns
“segredos” escondiam ratos mortos ou aves que saiam voando logo que a caixa fosse aberta.

A certa altura alguém se queixou que faltava a
engoreta. Quê?! Engoreta é a alcunha de uma pessoas que conheço em
Areias! Afinal a engoreta era um objecto importante na arrematação dos
“segredos”. A engoreta é um pequeno barril de madeira, com forma abaulada, usado para transportar vinho. Quem licitava recebia a engoreta podendo beber, mas se outra pessoa licitasse rapidamente, a engoreta mudava de mão, sem dar tempo aos licitadores para se saciarem com vinho. Olhei em volta, nada de ver a engoreta, mas havia uma
bota, daquelas feitas com pele (e com pelo!) de cabra e revestida internamente a pez. Entregaram-me a bota e aproveitei para mostrar a minha destreza (treinei durante a campanha da azeitona).
Também as línguas de porco, ofertas tradicionais para serem leiloadas, estavam praticamente ausentes. Apenas me lembro de ver uma, apimentada, acompanhada por azeitonas pretas, coisa de fazer crescer água na boca. Habitualmente as línguas de porco eram arrematadas depois da missa, ao longo de vários domingos e não só neste dia.

Ementes eu dava a volta pelo círculo, foram arrematados, os bolos (um chegou a 30€), o azeite (em grupos de 20 litros que chegaram aos 65€), sacos de batatas, mel, doce, feijão seco, fruta e frutos secos, etc., muitas das coisas compradas pelos que as tinham oferecido. Saíram ainda das caixas três coelhos e um pato. Reinou sempre a boa disposição, acompanhada por alguma disputa na tentativa de fazer subir os lances, o que raramente aconteceu. Curiosamente o dinheiro arrecadado com esta iniciativa (que no ano passado totalizou os dois mil euros), não reverte a favor de
S. Sebastião, sendo entregue à paróquia.

Para o final ficou um
cesto cheio de fumeiro. Antes de ser posto em licitação já tinha despertado o apetite em várias pessoas. Até eu já tinha verificado se tinha a minha “palaçoula” comigo. A “luta” desenvolveu-se entre o
Seixo de Manhoses e o
Vieiro, acabando os salpicões, pés-de-porco, alheiras e afins por ir parar ao
Vieiro por perto de 100€. O despique foi rematado com a expressão “nem por 100 ouros o lebabas…”. A forma tradicional de apresentar o fumeiro era pendurando-o num ramo que era exibido na altura da arrematação. Seria muito difícil pendurarem todo o fumeiro do cesto, num só ramo!
Depois dos agradecimentos aos presentes feitos pelo
Presidente da Junta de Freguesia, o grupo “
Os Pelões” cantaram os Reis e as Janeiras com a sua alegria contagiante.
Vamos dar a despedida
Termina o nosso cantar,
A oferta que nos derem
Muito nos vai alegrar.
Era um
fim de festa em alegria, contava-se a receita, carregavam-se as batatas e as cebolas, provavam-se os bolos.

Aproveitei para trocar algumas palavras com a professora (já na reforma)
Olímpia Coelho, dinamizadora desta tradição já há cerca de 30 anos. Pegou nesta iniciativa quando estava em actividade, recolhendo as esmolas com a ajuda dos alunos da escola primária. Felizmente as coisas estão melhores e não faltam voluntários a colaborar na recolha de tantas ofertas, que têm mesmo que ser transportadas numa carrinha ou no atrelado de um tractor.
Contas feitas, as esmolas renderam um pouco mais de 1900€ que serão utilizados no pagamento de obras, feitas ou a realizar pela igreja.
Por último acrescento que também participei nalgumas licitações! Os dois
“segredos” com que fiquei tinham um, um saco de rebuçados, outro, um saco de fruta cristalizada. Comprei ainda um grande bolo de amêndoa (delicioso, já comi), uma garrafa de vinho espumoso e uns bons quilos de cebolas.
Nota: No dia 28, possivelmente durante a manhã, vai passar na
Radio Ansiães (98.1 FM), a reportagem feita no local.