Quanta beleza se esconde em certas cartas, trocadas entre parentes, entre amigos, modestos correspondentes! É um género literário como qualquer outro. O género epistolar que se perde, as mais das vezes, num cesto de papéis depois da necessária leitura do destinatário, deixando nele apenas uma recordação, relembrada em certas frases mais modelares, de acento mais fundo e expressivo.
Eu não quero essa responsabilidade - e estou a pensar numa carta escrita corrente calamo que recebi do meu amigo, conterrâneo e prestimoso beneficente Dr. João de Sá, morador em Lisboa, onde é professor liceal de reconhecido valor. Prefiro correr o risco duma indiscrição, do que silenciar tão bela peça de paisagística viva, bem assim portadora duma saudade que só os que vivem pelo coração e pelo espírito sabem sentir:
“Prezado amigo
Em Agosto findo, quando o calor abrandou, ainda estivemos uns dias em Vila Flor. Foram poucos mas tiveram o gosto incomparável dos reencontros apetecidos. De quando em vez é preciso demandarmos a terra-mãe para desfazermos o torniquete da nostalgia e acertarmos o relógio efémero pela sábia exactidão das ampulhetas dos pinheiros…
De facto, nunca serei um homem da beira-mar. A sua mobilidade perturba-me. Por lá, não, tudo tão vivo e interpelante é ao mesmo tempo seguro, estável, fundamental. Uma funda conversão à autenticidade.
Trouxe a mais bela impressão de um passeio matinal à Serra. Percorria-a sob um sol de ouro e mel, do Frade à Senhora da Lapa, onde já não ia há anos. Quanta saudade remoí num dentro inlocalizável, ao ver de novo a caverna do Frade onde, em outros Invernos idos aos Domingos dava lições de História Universal e sobre “Os Lusíadas” a dois companheiros da jornada incolor, julgando, por esse meio, transformar o mundo!
Por lá andei até ao almoço, fundido na mestria do essencial, nesse reino do imutável. E a luz que explodia na solidão dos montes penetrou até às mais remotas camadas do meu ser. E ainda hoje ao lembrá-la, neste Inverno frio, me concede uma serena solidez que me pacifica”.
Eu tinha o mesmo sentir quando me deslocava à minha querida Vila Flor, esse telurismo sereno dos pinhais e dos pomares, das searas dos chãos e das urzes das ravinas. E até poetei dum jeito que terminava assim:
Cantem os outros o Mar
Que eu canto a terra bravia.
Foi ela que me ensinou
A cantar lá longe… um dia!
Está conforme com o original a que me reporto, arquivado com um lacre de azul-saudade.
Cabral Adão
Nota: Publicado no jornal por Cabral Adão, a respeito de uma carta que recebeu de João de Sá. Não consegui identificar o jornal, que seria quase de certeza da zona de Setúbal, nem a data, possivelmente nos anos 50.
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