07 novembro 2023

Cartas de longe

Levantei voo à hora em que as estrelas 
Emergiam do escrutínio da lonjura...
Não medi, nem distâncias, nem altura,
Todo eu era olhar, a recebê-las.

Em mim brotou o êxtase de vê-las,
De sentir, bem cá dentro, a tessitura 
Dessas gotas de água alada e pura,
Movido pelo medo de perdê-las.

Vi-me vogar numa amplitude de opalas
De secreto fulgor, quase a tocá-las,
Fendendo o insondável do seu véu.

Mas para além, havia outros espaços,
Das minhas asas só ficaram braços,
E, do meu voo... só restou o céu!

Poema de João de Sá, do livro "Flores para Vila Flor", 1996.
João Baptista de Sá, nasceu em Vila Flor, a 7 de Novembro de 1928.
Faleceu a 23 de Fevereiro de 2012.

30 setembro 2023

A confissão da Amélia (II)


Os domingos, na aldeia, são sempre dias do Senhor! Há uma alegria em todas as coisas, diferente da dos outros dias; umas harmonias de gorjeios e marulhares, mais termos que nos  dias de trabalho. As fatiotas dos trabalhadores são mais graves, as vestes das raparigas mais vistosas, as brancuras dos linhos mais impecáveis. E, ou esteja um domingo radioso de sol, ou o escureça um temporal de chuva e trovões, há sempre sinais flagrantes da sua soleníssima hierarquia, adentro da sociedade hebdomadária. São os toques dos sinos a chamar para a missa do dia, para a bênção, para a doutrina da miudagem; são acordes das violas e dos cavaquinhos, alfaias domingueiras que os jornaleiros usam para lhes adoçarem os calos; são os parzinhos ou idílios dispersos por toda a aldeia, nos caminhos, nos cobertos e nas salas.
É um destes parzinhos, um destes idílios, que vamos encontrar num maravilhoso e criador domingo de Setembro, manhã ainda, no quintalinho da Amélia. Adivinha-se já que é o Maximino, ao lado da sua estremecida conversada, presos dos olhares e dos sorrisos, um do outro.
Nessa manhã, a Amélia, já meio restabelecida, resolvera fazer-lhe a sua confissão. Enquanto a isso não se resolvesse, haveria sempre aquela dolorosa cena do beijo, como pedra de gelo, a arrefecer constantemente os seus mais ardentes arroubos.
Tinham-se sentado em cima do muro, tapetado de musgos e conchilros, que dava para o caminho. O quintal era extenso e descia em inclinação suave até um ribeirito, que corria muito precário para o rio; estava cheio de milho, tão crescido que havia lá pé que cobria um homem dos mais altos, não contando
com o «pendão». Nos intervalos, cresciam feijoeiros e num canto, ao pé da capoeira, subiam esgrouviadas couves galegas, as folhas muito enrugadas, de viçosas, guardando nos refoIhos, gotas de orvalho, que molhavam os pés a quem as abanasse. A capoeira, primitiva construção de alvenaria e tapumes, com a respectiva rede, os respectivos cestos para as galinhas porem os ovos, no fundo dos quais ficava sempre o «aninhador», e o respectivos poleiros, dava guarida a algumas dezenas de belos exemplares pedreses, castanhas, pretas, «carecas» e um garbosíssimo galo que atroava os ares, periodicamente, com o seu garboso cantar.
Do lado de lá do caminho, continuavam os tabuleiros de milho, alto em toda a parte, porque era regado, lá se vendo os regos condutores da água cortando as terras e até o caminho, em todas as direcções. E o cenário continuava em linhas quebradas até ao ribeiro, onde algumas lavadeiras ensaboavam peças de cor.
A Amélia encostava-se a um amieiro esguio, que dava «enforcado» a uma grossa e alta cepa, recamado de heras de folha pequenina.
- Não calculas, Maximino, quanto te estou grata por tudo quanto fizeste por mim! – ciciou-lhe com doçura.
- Não me fales nisso, Amélia! Nada fiz de especial. Faria isso por um qualquer, quanto mais por ti?!
- Eu sei que me queres muito e por isso... tem paciência, Maximino! Mas vais saber toda a verdade do que se passou como Júlio.
- Não fales nisso, que é melhor - intimou o rapaz, levantando-se e cortando um rebento de amieiro com que se pôs a bater numa perna, com nervosismo.
- Falo, sim! Nem descanso enquanto te não confessar a minha fraqueza. Sabes? Eu não via outra coisa senão a ti. Mas não me eram indiferentes os galanteios dos outros. Que lhe queres? Somos assim: fracas, fracas, talvez levianas! Umas mais, outras menos, ainda outras de maneira que não se percebe. Mas somos assim. Damos o cavaquinho por um dito, por um elogio, por uma dedicação de qualquer que não seja o que nós amamos. As vezes, estamos com o coração num, que é o verdadeiro, e o olhar noutro, que não conta nada para nós! Outras vezes julgamos que não nos deve impressionar o palavreado de qualquer engraçado e... não! gostamos até de os aturar, no fundo!
Foi por isso que eu ouvi mais de cem vezes o Júlio da Venda pedir-me namoro e o fitei com certo enleio e me ri com ele. Dizia-lhe sempre que não, é claro! Depois, esforçou-se por que eu lhe desse um beijo. Não me zanguei abertamente, como devia: ri-me, ainda por cima! E quando ele me garantiu que, se o beijasse, já não lhe poderia negar namoro, que o beijo é a assinatura da posse, e não sei que mais... eu animei-o a que experimentasse. - «Experimente e verá!»
- Oh, cala-te, por Deus, Amélia! Preferia mil vezes que nunca me contasses essas tontices!
- Ouve, Maximino, o resto! É a defesa da culpada que tens de ouvir. Agora... aqui vai a minha grande culpa: marquei-lhe entrevista aqui ao portão. Eu achava graça, andava alvoroçada com aquele encontro, mas não lhe punha fé nenhuma. No entanto... perdoa a esta cabeça louca!... não me importava de o
beijar, só para ver... Ele chegou, abraçou-me e quis entregar-me uma caixinha. - «Que é isto?» - perguntei, atrapalhada.
- «E uma pequena escrava de ouro, uma lembrança para si...» – Não pude ouvir mais. Fugi para cima, ao compreender as maquinações daquele maroto. Tive a desdita de tu assistires a esta maluqueira horrível... Pronto! O senhor Padre Miguel já me absolveu. Agora absolve-me tu, por Deus! suplicou a pobre rapariga, a chorar.
- Já estás perdoada há muito, Amélia! Não só agora, por te ver doente. Mas nunca mais falaremos nisso, valeu?
- Valeu! - concordou a Amélia, enxugando os olhos.
O Maximino expôs-lhe, em seguida, o seu desejo de casarem logo que o doutor consentisse, entretido, ao mesmo tempo, em tecer com braços de hera, uma espécie de coroa, que colocou na fronte da sua doentinha querida.
Nesta altura, apareceu a cabeça do Dr. Casimiro acima do muro, que passava no caminho, em visita aos doentes.
- Então, tu já aí estás, rapariga?! - perguntou, sorrindo.
- E verdade, senhor doutor! Parece que já estou boa para outra - respondeu-lhe a Amélia, também risonha.
- Tem muita cautela, rapariga! Olha que tu melhoraste, sim! Mas curar, não! Só se arranjasses um coração novo.
- Tenho aqui o do Maximino, que mo esteve a oferecer agora mesmo.
- Olha que isso de casares... não sei, rapariga! Pelo menos não podes ter filhos, se não arriscas-te a baquear. Adeus! Deus vos ajude!
- Adeus, senhor doutor! Muito obrigada!
Já o doutor Casimiro ia lá longe, quase a entrar na curva do ribeiro, quando o Maximino, esbarrigando-se no cimo do muro para ainda o enxergar, lhe gritou:
- Olhe, senhor doutor! Há-de sero que Deus quiser...

A primeira parte pode ser lida aqui:

Retirado do livro O Homem da Terra, da autoria de Luís Cabral Adão, publicado em 1986.

28 setembro 2023

O Terreiro


Ao; Francisco de Soveral Pastor

A Praça é dos cartolas, dos senhores
De gravata, de pose ou de dinheiro,
Onde passeiam leigos e doutores:
O médico, o juiz, o tesoureiro...

Mas o povo, os humildes servidores
Nas horas de lazer vão pra o Terreiro,
Ali tomam o sol, tomam amores,
Ali mostram o fato domingueiro.

O Terreiro é salão de baile, até,
Onde as moças da vila dão ao pé
Nesses jogos de roda tão castiços.

«Quero dar duas voltas a meu jeito!»
Cantam elas, forçando o rijo peito
A rodar contra o peito dos derriços!


Soneto retirado do livro “Versos – Vila Flor”, impresso em Novembro de 1966, da autoria do Dr. Luís Manuel Cabral Adão.

15 setembro 2023

Para a escola

Meninos-para-a-escola (Amaryllis belladonna)


E lá vai, lá vai
A criança para a escola,
Toda catita!
Lavadinha, tão bonita,
Lá vai, lá vai, lá vai.

Saiu de casa, inda cedo,
Em direção à escola.
Sozinha mas não tem medo -
Leva aos ombros uma sacola.

Vai andando em passo lento, 
Pára aqui, espreita além.
Lembra-se a todo momento, 
Das palavras da sua mãe.

- Meu filho porta-te bem,
Respeita o teu professor.
Não faças mal a ninguém,
Porque ralha Nosso Senhor.

Tudo sol, tudo alegria,
Sente-se feliz a criança. 
Até o melro assobia! - 
Mais ânimo, se não cansa. 

Chega à escola, a horinhas,
Foi o primeiro a entrar.
O professor aos meninos,
Diz ser exemplo a imitar.

E à tarde, já à noitinha,
Hora de descanso e saudade,
Dizia ele à avozinha:
- Já conheço a Caridade.

- Diz-me então o que é,
Filho do meu coração:
- É que hoje o Manel Zé, 
Também comeu do meu pão.

E lá vai, lá vai
A criança para a escola,
Toda catita!
Lavadinha, tão bonita,
Lá vai, lá vai, lá vai...

Maio de 1961
J.N. Fonseca*
*José do Nascimento Fonseca nasceu no Nabo a 22-12-1940 e faleceu a 27-07-1983.

24 junho 2023

A Minha terra (Cabral Adão)


A MINHA terra é uma sede de comarca do distrito de Bragança, chamada, por mercê de vontade real, Vila Flor.
Se «quem o feio ama, bonito lhe parece», que acontecerá com quem ama o bonito? Excede tudo quanto se possa congeminar em alegria íntima, em plenitude de encanto, em sorrisos interiores de apaziguamento. Amar a minha terra é amar uma flor, o fulcro da mais bucólica poesia, o molde da beleza, a cor, a graça, a doçura!
Ainda me chegam a cada passo os perfumes da serra, aquela vertente do Facho que se avista logo do Alto de Espinho, no dorso do Marão, divisório e austero.
São estonteantes as emanações do mar amigo, à beira do qual me fiz enteado, por felicidade do destino. Eu já me acostumei a estas paisagens aliciantes, que o mar recorta em quebradas de capricho, cauda verde-clara a brincar permanentemente com os panos verde-escuros da nossa costa arrábida. Mas quando me extasio pelos altos de São Filipe ou de São Luís, gozando a delícia de panoramas duma nobreza sem par; quando me perco, como um ponto num todo, pelo areal imenso e miudinho da Troia, procurando nos conchais as peças mais bizarras; quando me embriago na alegria picante dos laranjais da beira-Sado, outros mares espumados de folhagem escura, onde as bolas de oiro sorriem aos olhos, pontuando a fortuna do apetite em haustos de cor e fragância; quando os crepúsculos de Outono me prostam numa adoração de hossanas, embebendo-me a alma com melancolias de ametista e oiro... – ah! então a voz do berço vem-me bater aos ouvidos, como um ressaibo de quem sofre ciúmes! E que faço eu meu Deus? Que faço?
Abro o coração e releio as colecções das minhas lembranças. É então que eu julgo sentir as tais nevralgias da alma a que nós somos atreitos. É então que eu julgo sentir - saudades!!!
Saudades da minha praça. Lembrai-vos, rapazes do meu tempo, da praça de Vila Flor? Era a sala de visitas, o palco, o estádio, o jardim, a praia, o «rendez-vous» da juventude de há anos. Quem havia de dizer que o coração da linda vila se imolaria em holocausto duma urbanização geométrica, mas cruel?!...
Estou a vê-la, nas noites de luar, o luar faiscante de Trás-os-Montes; grupos de rapazes, de raparıgas, passeando, passeando, dando voltas, os bancos repletos, as janelas de roda floridas de moradores, gargalhadas por um lado, correrias de crianças por outro... e o luar sempre a banhar a minha praça, num embalar de mistério que só de longe se vem a compreender!
Saudades da Fonte Romana, talvez donde brotou água para me fazer cristão. Saudades da minha serra, onde as capelinhas vigiam, como postos de fiscalização do céu, imperceptivelmente ungindo as almas duma bênção reconfortante, quando alvejam ao sol, ou murmuram à lua uns segredos de brancura que quase se adivinham nas percepções do sonho. Saudades dos vinhedos, dos pinhais, da visão esplendente das nossas madrugadas, surpreendido o viajante nas Portas do Sol ou na scanadas da Figueira Preta. Saudade do sino que repicou, festivo, na hora do meu baptizado, e também no do meu primeiro filho. Saudades das pombas que eu via sempre no céu, em revoada de branco sobre o azul, durante a procissão de Páscoa, ou na de Pascoela, quando se levava o Senhor aos presos da cadeia. Saudades da missa do senhor padre António, modelo de virtude e sacerdócio, para quem nunca foram penosas as cruezas do seu mester sagrado.


Saudades... dos tipos da minha terra.

Excerto do livro Paisagens do Norte, do Dr. Cabral Adão, publicado em 1954 e reeditado em 1998 pela Câmara Municipal de Vila Flor.
Luís Manuel Cabral Adão nasceu em Vila Flor a 24 de Junho de 1910, falecendo a 6 de Agosto de 1992, em  Almada, vitimado por paragem cardíaca, partiu, no dia seguinte, para Vila Flor, para jazigo de família.

23 fevereiro 2023

A velha praça



A velha Praça começava
Onde findava
A nossa inquietação.
Varandas engalanadas
E janelas sempre acesas.
Harpejos de comoção
Libertados dum piano,
Na branda respiração
Das tílias quase apagadas
No crepúsculo de Verão.

E nós a vermos os outros.
Sobretudo a vermo-nos passar
Desde o começo do mundo,
Tentando dissimular
O abismo mais profundo,
Com um candil de luar.

Poema de João de Sá, do livro "Vila à Flor dos Montes", 2008.
Fotografia: Praça da República, em Vila Flor, antes do último arranjo urbanístico. 

João Baptista de Sá, nasceu em Vila Flor, a 7 de Novembro de 1928. Faleceu no dia 23 de Fevereiro de 2012, em Lisboa.


07 janeiro 2023

Vento (João de Sá)



Ó este vento que me torce a alma,
Olhando as chamas, no espaldar do escano,
Tecendo o tempo em fios de ano e ano,
Voraz caruncho que ninguém acalma.

Volúvel, este vento amanhecendo...
Corte de longe em coração cigano.
Breve pausa de engano e desengano,
Clamor que me estrutura, corroendo...

Fecho o livro que lia. O impossível
Avantaja-se e torna-se audível,
Mas nada se aproxima que transgrida:

O bater duma porta, uma telha
Partida, vozes, passos numa quelha,
Seja o que for que arremede a vida!

Poema de João de Sá, do livro "Vila à Flor dos Montes", 2008.
Fotografia: A caminho da Ribeirinha, na Quinta da Peça.


01 janeiro 2023

Caminhos (João de Sá)

Que todos os caminhos que descubro
Me descubram também, e neles encontre
Uma fimbria longínqua de horizonte
Desenhando, a névoa, um céu de Outubro.

Das auroras de Agosto o gesto rubro
Se torne voz, me acalente e conte
A odisseia dessa velha fonte
Que emudeceu e nunca disse tudo!

Buscai-me nos caminhos. Sou o monge
Que vem não sabe donde, mas de longe...
Trago textos no olhar, parai e lede.

Eu sou o viajante e a viagem,
Latejo de seara e a própria aragem,
A frescura da água e o ardor da sede!

Poema de João de Sá, do livro "Vila à Flor dos Montes", 2008.
Fotografia: Caminho para o Santuário da Nossa Senhora dos Remédios, em Vilarinho das Azenhas

24 junho 2022

Luís Cabral Adão, 112 anos


Completam-se hoje 112 anos desde o nascimento de Luís Cabral Adão. Nasceu em Vila Flor, Trás-os-Montes, no dia 24 de Junho de 1910, tendo falecido em Almada a 6 de Agosto de 1992. 
No dia 18 de Setembro, integrada na homenagem que lhe foi feita pelo município de Vila Flor, foi descerrada uma placa no escadório do Cabeço de Nossa Senhora da Assunção, em Vilas Boas. Essa placa contém um soneto de sua autoria, publicado em livro em 1966, "Vila Flor" (Versos).
Na fotografia podemos ver o presidente da Câmara nessa altura, Dr. Artur Pimentel, acompanhado dos filhos do homenageado.


Imagem, das formosas, mais formosa:
Senhora d'Assunção, no pico agreste,
Vestido cor de pétalas de rosa,
Manto volátil de cetim celeste!

Única imagem, esta que assim veste
E numa nuvem se ergue, vaporosa,
Braços ao alto, olhos como em teste
De em si conter centelha milagrosa!

Transfigurada estátua que eu venero
Desde menino, e a que tanto quero
Por me rasgar de luz a densa treva:

Em ser's da Virgem Mãe cópia fiel,
Volve pra mim teus olhos d'ouro e mel,
Dá-me um lugar na nuvem que te leva!

Soneto retirado do livro “Versos – Vila Flor”, impresso em Novembro de 1966, da autoria do Dr. Luís Cabral Adão.

26 janeiro 2021

e de repente é noite


Faz alguns anos que comecei a partilhar o livro  "E de repente é noite", do ilustre vilaflorense falecido em 2012, João de Sá. Nestes dias de confinamento, em que o tempo parece que nos sobra, chega-nos para fazermos viagens musicais, de imagens e palavras que preencheram os nossos dias, num passado mais ou menos longínquo. E, no quente da lareira, ao ritmo da chuva que ora quer cair, ora se envergonha, os sentimentos emergem e dão-nos alento. Saibamos aproveitar estes dias para nos (re)encontrarmos, porque a loucura em que vivemos dá-nos poucas hipóteses.




INDICE
Faço isto em nome de um fogo distante
É para reavivar as obliquas luzes da memória
Dizer os ventos que atravessaram
Por onde caminhamos é o dia
Quem deu nome a esses espaços
Fixa a mão o que Junho não foi
Nos vasos do coração
Não tem nome a barca
Demoro-me sob as romãzeiras
Não me despertes para o festim
A cidade rarefaz-se ao longe
Estão por lá, bem sei, todas as palavras
Que os instantes do dia
Deixai a criança sentada no granizo
A impetuosa deambulação do álcool da escrita
Acenas-me de longe
Onde estavas tu no início desse verão
Saber como são breves
Em Maio os campos acendiam-se
Sabíamos a alba uma tela branca
Havia um poço
Todos desapareceram
Sei que o corredor me levava
A charneca de yorkshire aberta
Os ventos afinam os violinos dos choupos
Ficar em paz com as coisas
O sol atravessado pelas sombras
Vou pelo assombramento de quartos e salas
É dorido o canto
Ardem pássaros nos olhos dum rapaz
Basta um caminho
Já ninguém lembra o que sobrou de nós
Os teus passos são ímpetos entardecidos
Não é sono nem desmaio nem esquecimento
Segredos de obscuros cristais
Que o gume das colinas
Não aceites a morte, mãe
Outra vez o serão
Nunca disseste que virias
Uma vereda de desassossego
Passei por ti como luz branda
Sentemo-nos na soleira da porta
Pousaram nenúfares na água do teu peito
Ergue as palmas de um saber feito
Que mãos sacodem velhas ferrugens
Que realidade procuram surpreender
Não reduzas tudo a esquadria e pedra
O tempo pousa-me nos dedos
Andei perdido por caminhos ínvios
Vou aparelhar as tábuas do barco

João Baptista de Sá, nasceu em Vila Flor, a 7 de Novembro de 1928.
Faleceu a 23 de Fevereiro de 2012.

24 junho 2020

No vale da Vilariça



- Bonito dia, Rosária!
- Bonito dia, Gonçalo!
Não eram os personagens do «Idílio Rústico», que Trindade Coelho tão finamente bordou, mas um casal de jovens e de trabalho que morava em Sampaio, lá para as bandas da Vilariça, entre Vila Flor e Moncorvo. Tinham-se acabado de erguer, estrelas ainda a brilhar no azul, mas já esmaecidas pela aproximação do sol. Era naquele Agosto ardente, tão ardente que até se assava uma sardinha posta na hora da sesta em cima duma fraga.
O dia ia a romper depressa e o Gonçalo entrou logo de aparelhar os burros e preparar os sachos para marchar direito à canameira, a meia légua de distância de sua casa.
A Rosária já tinha posto na mesa de castanho, preto de velho, os figuitos e a aguardente do mata-bicho e começava a apanhar no Cabanal alguns guiços bem sequinhos para adiantando o almoço que, por volta das onze horas, ia levar ao seu homem: e até o Zé, raparigo dos seus sete anos, filho do casal, dava os últimos amanhos às costelas e pescoceiras, untando de cuspo as tranquetas dos sedenhos daqueles  e experimentando as molas destas, e verificava se as formigas de ala estavam bem presas e vivas nas grileiras das armadilhas, cevadas de véspera, pois esperava fazer uma boa colheita de tralhões, rabitas, piscos e folecras. E lá vai ele com o pai, que já desce a ladeira, burricos à frente com angarelas, sachos e apetrechos vários sobre as albardas.
As margens do vale são alinhadas e bastante abruptas. Quer dos lados de Vila Flor, quer dos de Alfândega da Fé ou Moncorvo, desce-se muito para se lá chegar. Segue ao longo da Ribeira, desde os cerros de Bornes até ao rio Douro, onde estronca em esquadria.
A canameira do Gonçalo, herdança do seu falecido e bom pai, era uma larga faixa de terreno, começando no caminho marginal e acabando na Ribeira. ladeada pelas courelas dos vizinhos.
Quase ao centro, via-se uma nora de alcatruzes zincados que trazia à água de pequena profundidade até à altura de um metro, suficiente para chegar à todos os cantos do terreno.
Aquelas terras são de uma fertilidade extraordinária!
E este ano, especialmente, que houve «rebofa»!
Quem conheceria aquela extensa planura cobertinha de água que transborda, vale acima, do endemoinhado Douro, muito subido pelas chuvas torrenciais de muitos dias?
Aquela água toda, com um rico nateiro de naturais e fortes adubos, dava à Vilariça o grandioso aspecto dum lago, como outrora dizem que foi, e à ubérrima seiva que vicejará nos seus belos e afamados frutos.
Santa terrinha esta, em cujo seio exubera o sagrado mistério da germinação, no dizer de Campos Monteiro, que a cantou!
E o Gonçalo bem lhe conhecia o valor! Se era quase só dela e do trabalho aturado dele e da própria patroa que viviam!
E governaram-se regularmente, pois tinham um bem fornecido bragal, boa adega com salgadeira, a pipa do carrascão, as linguíças, embrulhadas em velhos envelopes. Numa caixa de madeira, a talha das azeitonas, a arca do azeite, o garrafão da aguardente, uma tulha de pão, um monte de batatas, cabos de cebolas e alhos ao dependuro; e lá no canto da arca, escondia-se uma boa maquia forra.
Muita fartura para os três, muita poupança, mas nada de luxos ou gulodices.
— Eh! burros! Xó!
Mal chegou. o Gonçalo atrelou um burro ao pau da nora, com um frondoso ramo de salgueiro escarranchado no cachaço, para o aliviar da mosca.
O outro iria pastar até chegar a sua vez.

O nosso Zé, com um pequeno sacho, ia fazendo terra fresca, aqui e além, em lugares adrede,  junto dos poisos certos da passarada. arrumado a uma árvore ou a um poste da vinha ou à um merouço com silvas, onde armava as costelas de maneira que o sol. logo ao nascer, fizesse rebrilhar bem às asas das formigas, isca muito apetecida e difícil de arranjar.
O pai, deixando o jerico sozinho a puxar à nora, foi para a horta, de sacho às costas, a guiar à água que, pelas augueirras, corria aos diversos talhos dispostos com simetria. Aqui um talho de cebolo, ali outro de tomates, além de pimentos, de feiões, de abóboras ou botelhas, de pepinos, de cenouras e tal e tal e, mais ao fundo, junto à Ribeira, uma grande extensão onde medrava o «fruto», melancias e melões que faziam boa figura nos mercados próximos.
Alfaces tentas e couves galegas estendiam-se ao longo das augueiras; e no entre-meio de alguns regos e nas pontas das rodeiras, até se aproveitavam os beldros, óptimos para o caldo, que ali cresciam ao Deus-dará.
E à rega ia-se fazendo lentamente, num abrir e fechar de regos que o sacho de Gonçalo operava numa roda viva.
Uma ou outra vez, à água nunca mais chegava ao fundo dum rego, pois se escoava pela buraca de alguma toupeira, à qual não tinha sido afuguentada pelo cadáver duma outra, morta na véspera e espetada numa rodriga a dois ou três pés do chão.
Tapada a buraca por meia dúzia de chuçadas com o olho do sacho, a regra continuava.
Por volta das onze, pela hora velha, quando o Gonçalo soltava o burro para o largar no pasto ao pé do outro e o Zé regressava com alguns pássaros da caçada, chegava a Rosária, de cesta à cabeça, coberta com uma taleiga vazia em que havia de levar, no regresso, alguns pimentos para a ceia.
Dirigira-se para a cabana de colmo, prantada na sombra duma grande nogueira.
O calor já era sufocante e todos limpavam o suor da cabeça e do tronco por entre os peitos das camisas largamente abertos.

Estendido o almoço no chão, sobre uma toalha de linho, alva retesada pelo cloreto, os três se abeiraram da comida, munquindo-lhe e bebendo-lhe assim como manda à lei! O caldo dos tais beldros, muito gostòzinho, o bacalhau com batatas, regados a azeite e vinagre vindos em garrafinhas, e a bela pinga da cabaça que refrescava as secas guelas (até o Zé bebia uma chícara dele!).
Depois... ficavam todos a fazer de jibóias, para ali deita- dos cada um a sua sombra.
Que calmaria durante aquelas horas de sesta! Muito calor, o zumbido das vespas em volta de alguma poça de água que ficou da rega, nem o pio dum pássaro, nem o cri-cri dum grilo!
Mais tarde, ainda com bastante calor, recomeça o trabalho.
Quando a camioneta da carreira subiu a estrada por altura dos Nuzelos, nas ladeiras em frente, o nosso bom Gonçalo já andava com os burros jungidos à charrua, a lavrar a restolha da trigueira. O Zézito, finda a caçada e levantadas as armadilhas, (a tarefa rendeu doze tralhões, três rabitas, e alguns centieiros) tinha ido à Junqueira, povoação na margem oposta do vale, junto à estrada, levar um recado ao seu padrinho Sá Lemos. Ao chegar lá a casa, ficou espantado de ver os filhos do padrinho muito bem postos, com andainas novinhas e gravatas de seda!
Perguntando a um deles os motivos de tanto luxo, foi-lhe respondido que o pai tinha encontrado uma panela de moedas romanas, ao surribar uma terra para bacelo e que o Senhor  Soveral Pastor, de Vila Flor, muito amigo de coisas antigas, lhas tinha comprado por bom preço! Intervindo, o padrinho do Zé deu-lhe a bênção e disse-lhe que já não era a primeira vez nem a segunda que por ali apareciam potes de barro a abarrotar de ricas peças do tempo dos romanos. E havia também muitas pedras de túmulos. Não, que toda a vizinhança era rica de coisas históricas!
Aquela estrada que passava no alto das Quintas do Zimbro e da Tarrincha, foi feita pelos romanos. E as ruínas daquele castelo, frente à Quinta da Silveira, sobre o cabeçozito que se eleva entre o sabor e a Ribeira? Esse não sabia de que data era, mas sabia que deu nome ao vale, pois foi sede dum povoado que se chamava Vila Rica de Santa Fé.

Cumprida a missão, o Zé voltou à canameira muito admirado do que tinha ouvido.
Quase ao toque das Trindades, carregadas as angarelas dos jumentos com algumas botelhas, bandeiras de milho e vagens de feijão, lá seguiram ladeira acima, a caminho de casa, o Gonçalo e o filho, pois a senhora Rosária já tinha abalado, para tratar da ceia.
Junto à fonte das águas minerais, de muita fama para as doenças de estômago, encontraram um grupo de pessoas lá do povo que comentavam um episódio muito engraçado, sucedido na véspera.
Foi o caso que o João Rendeiro, cuja mulher andava para toda a hora, ao despertar, de madrugada, sentiu com os pés uma coisa a mexer-se no fundo da cama; e, certificando-se do que era, deu uns empurrões à patroa gritando-lhe:
- Acorda, oh, Rosa! Olha que já te nasceu o raparigo!

Texto retirado livro Paisagens do Norte, da autoria de Luís Cabral Adão, publicado em 1954. Luís Cabral Adão nasceu em Vila Flor, Trás-os-Montes, no dia 24 de Junho de 1910, tendo falecido em Almada a 6 de Agosto de 1992. Os restos mortais foram sepultados no cemitério da terra natal, assim se concretizando um anseio que expressamente havia manifestado.

Cabral Adão - Síntese Biográfica