"Levanto-me muito cedo e venho sempre à missa d'alva. Visto o casaco e por aí caminho eu, desde a quinta lá para os lados de Sampaio, e venho a pé, que remédio!, pois não se ganha para trazer um machito do meu genro, vai todos os domingos trabalhar com eles, só quando precisam de ferraduras é que trago um, mas gosto de vir por aí acima, olhar para as oliveiras em flor ou com o fruto já, ou então na época das colheitas, é um regalo ver o trigo e o centeio curvarem-se no ar da manhã, a darem os bons-dias, parece até que as espigas se conhecem e se debruçam umas para as outras a falar das vizinhas, e os pardais já começam a chilrear, deixá-los governar a vida, também precisam de comer, oxalá se fiquem por estas searas que são de quem pode com o desgaste e não vão para as nossas, que têm de dar para o ano inteiro e já é um pau se houver pão à fartura.
Hoje é que me esqueci de me levantar cedo, mas a verdade é outra, o reumático aperta comigo e as manhãs estão frias de mais, embora seja bonito ver as azeitonas tão pretas que é um regalo, a geada também é linda, põe tudo branco, tal qual os cabelos dos velhos como eu, mas é fria e o vento atravessa os ossos, de maneira que me levantei tarde, comi pão com queijo, bebi um copo de vinho e vim por aí acima, devagar e com os joelhos aos estalos, mas vim. Não queria faltar à missa e havia outra às onze horas, mas cheguei cedo e meti-me na taberna do Albino, onde encontrei o Daniel, e copo puxa copo, palavra puxa mais conversa, ali me entretive até quando só faltava um quarto para as onze.
Quando saí para o largo da igreja, vi muitos carros parados e outros que chegavam e senhoras a saírem todas embonecadas, e outras ainda, a passarem muito bem vestidas, algumas de chapéu, muito pintadas!, e mal podiam andar nos sapatos de tacão alto, e vi mais aquela rapaziada, de gravata à porta da igreja, a ver passar as mulheres, toda a gente fidalga!, e eu fiquei embasbacado com tanta vaidade, porque os conheço a todos e sei que muitos não ganham para aquilo, onde irão buscar o dinheiro?, pensei cá para os meus botões, e fugi, esqueci os joelhos que estalavam com o reumático e vim para a quinta, pois aquela missa não era para mim, Deus me perdoe!, para o domingo que vem levanto-me cedo e vou à missa d'alva, essa sim, é para os pobres."
Texto retirado do livro "O Coração da Terra"(Caminho, 2006), da autoria de António Modesto Navarro. Mais um escritor vilaflorense que este blogue divulga com muito gosto.
3 comentários:
Ainda me lembro da missa d'alva. Era à que eu assistia, por motivos familiares, porque a das onze coincidia com a hora de fazer o almoço...
Quanto às indumentárias das senhoras da missa das onze, o autor diz a verdade, como, aliás, é seu hábito!!!...
Parabéns, Aníbal, por dar a conhecer outro escritor vilaflorense!!!
Cumprimentos
Anita
De surpresa em surpresa caminho neste blog cada vez que o visito.
Agora descubro um texto magnífico de Modesto Navarro, com o qual encontro tantas afinidades: a emoção da origem e das raízes transmontanas na Terra Quente, a saida para a urbe capital muito cedo, a descoberta do mundo, a viagem pela realidade de um tempo e modo desiguais, a utopia e o desencanto, o amor pelos rostos rudes mas firmes de um povo esquecido que a cada momento ressurge na minha memória, como "amador que ama a coisa amada" nas suas próprias palavras .
Também eu compartilho da missa d'alva e nela me reencontro com os meus e com o meu passado - tão real e tão presente como se agora fosse.
Daniel de Sousa
Gostei do título "missa d´alva" e li o texto saboreando a descrição. O final deixou-me porém um doce amargo. Na minha ingenuidade a missa é sinónimo de "comunhão" e o autor, desfazedor de sonhos, veio lembrar-me que há missas para ricos e para pobres!
Boa ideia a de escolheres textos de autores da região, de os divulgares e de os ilustrares com fotos tuas.
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