Quarta-feira de trevas. Era a perdição do rapazio por causa das matracas. Não havia bicho careto que não fizesse umas matracas. Com três tábuas, seis furos e um fio, era um aparelho feito, pronto a matracar! Dumas me lembra, que o meu sapateiro apresentou numa ocasião, com perto dum metro de comprido. E o Henriqueto, assim lhe chamavam, era marau! Metias-as debaixo do capote, lá mesmo ao fundo da igreja. E durante os ofícios, sacava delas... tracla tracla tracla... Quem sabia lá que era o Henriqueto que assim prevaricava?! Fartava-se de gozar, com um risinho amariolado. O pior foi quando o Padre António descobriu! Se o sapateiro apanhou ou não com elas, já me não lembra. Mas não mais se tomaram a ouvir!
Quando chegava o fim dos ofícios e os padres batiam palmadas nos livros, oh barulho ensurdecedor! E quem é que acabava com aquela música!? Um desaforo, as tais matracas.
As solenidades religiosas de quinta e sexta-feira santa decorriam com o máximo relevo que a liturgia prescreve, não faltando um único preceito ao desenrolar das cerimónias, mais rigorosas e luzi das que as congéneres das grandes cidades, saiba-se.
Ninguém se eximia ao uso dum sinal de luto, por pequeno que fosse, fato, gravata ou singelo peitilho negro. O ar de todos era compungido ou simplesmente respeitoso. A
igreja enchia-se de chales e fatos pretos, os dois dias eram guardados, a vida inteira vivia o drama da Paixão, como desgosto que pertencesse a cada família habitante, quer de jornaleiros quer de ricaços. As ruas eram juncadas de alecrins e arreçãs, nome nortenho do rosmaninho.
Após uma gestação de tanto rigor, não admira que as aleluias saíssem esfuziantes, atingindo o delírio, mesmo, nas ruas, onde os Judas estoiravam, casacas esventradas vertendo palhuço e cinza pelo rombo. Os sinos tocam até lhes cair o badalo ou racharem, como por vezes aconteceu. O rapazio vai em bando pelas portas dos abastados a pedir rebatinha, que as meninas de casa lançam em tabuleiros: nozes, figos secos, amêndoas ou moedas de tostão, gozando o teatro dos atropelos, com a fúria de cada um apanhar a maior parte. E os fomos pejavam-se de empadas (folares) e bolos doces, obrigatórios na ementa do domingo de Páscoa.
Excerto do livro Paisagens do Norte, de Cabral Adão.
Fotografias: Cerimónias da Semana Santa 2011, em Vila Flor.
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